quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança – Parte III

Lembranças Do Que Vivi e Do Que Não Vivi

          A porta da cabine fechou automaticamente atrás de Sinuhe. Ele sabia exatamente o que acabara de lhe acontecer. Seu duplo, criado há 40 anos, deixou de existir em Nobiloria e a metade de sua alma retornara. Sentou-se no divã e pôs-se a lembrar de sua conversa com Viatilis, Conversa que o levara a quebrar um tabu de seu povo.

“Não se deve reconstituir um mesmo ser duas vezes ao mesmo tempo.”

       Viatilis era o mais velho dos golfinhos psíquicos a serviço da resistência. Um ser poderoso que sozinho mantinha em segurança um dos principais estaleiros espaciais da Resistência Orgânica. Sob a força mental de Viatilis era como se o Estaleiro Aldhafera jamais tivesse sido construído. Toda pessoa que deixava o local, esquecia-se dele automaticamente. Nada em Nobiloria era capaz de detectá-lo. Sequer os governos da resistência tinham registros de sua construção. Tudo fora “deletado” por Viatilis. O único que sabia da existência do estaleiro era o Marechal Sinuhe, apenas porque Viatilis assim o permitia. Aldhafera era o responsável pelas inovações da resistência em tecnologia de guerra. Dali saiam os mais variados protótipos de armas e naves. Em seus bancos de dados estavam as memórias e corpos dos maiores cientistas de Nobiloria. Ali nasciam as últimas gerações de poderosos seres psíquicos, humanóides ou não.

       Era o dia 15 de Treddoze de 1963D’GOE, um Noborar. A batalha da semana terminara no dia Utiltres, dando mais tempo ao Marechal para revisar a frota. Estando todas as naves em ordem para a semana seguinte, ele resolveu fazer uma inspeção surpresa em Aldhafera, em pleno dia de oração a Deusa Nob. Não sabia dizer quantas pessoas ainda guardavam os santos dias do final de semana, já que eram os únicos em que as forças de GOE não batalhavam. Era o tempo que os orgânicos tinham para se reorganizarem.

          Sinuhe saiu da Nave Capitânia Menkalinan sozinho, pilotando Cheleb, o pequeno cruzador particular do Marechal. Um motor armado até os dentes que já o retirara de sérias enrascadas. Ele já havia sobrevivido à destruição de duas naves capitânias e no futuro também veria o fim de Menkalinan.

          Antes de traçar uma rota, chamou Viatilis mentalmente. A resposta foi rápida. Aldhafera estava orbitando o Quasar de Nobiloria. Uma viagem de duas horas em dobra 8. Quando Cheleb voltou ao espaço normal em torno do quasar, uma projeção mental de Viatilis se fez presente na ponte de comando.

          - Quanto tempo Sinuhe? Que bons ventos o trazem, meu amigo, ao esquecido Aldhafera?

          - Eu jamais esqueço dele e muito menos de você, caro amigo. Estou com tempo e resolvi fazer-te uma visita. Quero relembrar bons momentos e ver quais novidades vocês estão produzindo.

          - Então, por favor, Senhor Marechal, desligue seus motores. Vou teleportar você e Cheleb ao estaleiro. Não vou ariscar uma detecção abrindo um hangar. GOE tem ouvidos e olhos demais esparramados por aqui. Tudo o que eles viram foi uma rocha saindo da dobra espacial.

          - Ok, Senhor Comandante Viatilis. Precauções nunca são demais.

          Sinuhe desligou os motores. Quando voltou a si estava de pé na sala do apartamento reservado ao Marechal da frota em Aldhafera. Uma projeção mental de Viatilis estava ao seu lado.

          - Seja bem-vindo Marechal. Espero que a decoração esteja ao seu gosto e que estas paredes lhe proporcionem um pouco de repouso. Vai passar esta noite conosco, não?

          - Não tinha essa intenção, mas sempre me esqueço do quanto este apartamento é convidativo. Posso deixar para partir amanhã cedo.

          - Ótimo. Quero lhe mostrar alguns projetos. Inclusive todos os detalhes de Miaplacidus, sua futura capitânia.

          -Uma nova capitânia?  Mas Menkalinan ainda está em ótimo estado e as forças de GOE ainda não conseguiram superá-la.

          - Realmente ela está durando mais que as suas predecessoras. Mas eu não sei o que seria melhor. Se isso está ocorrendo porque o Marechal está mais cuidadoso ou se é porque o inimigo está mais relaxado.

          - Não vou discutir de quem são os méritos pela longa vida de Menkalinan.

          Ambos riram e continuaram falando de amenidades. Depois de um delicioso café da manhã, Sinuhe visitou diversas instalações de Aldhafera, viu as projeções em 3D de novos armamentos e da futura Miaplacidus e por fim a maternidade dos psíquicos. Almoçou com alguns dos cientistas e discursou aos militares residentes. Dispensou o jantar, tomando apenas um copo de suco de maracujá. A única espécie sobrevivente do planeta natal da GOE.

          De volta ao apartamento, livrou-se da farda, tomou um banho e vestiu o confortável pijama de seda que estava sobre a cama a sua espera. Sentou na poltrona defronte a cama onde fez suas orações diárias para Nob, unindo as pontas dos dedos das mãos e encostando os dedões no queixo e os indicadores na testa. Ao terminar chamou mentalmente por Viatilis, que se fez presente.

          - Já está pronto para dormir, meu amigo? Ainda é cedo.

          - Infelizmente não sou como você, meu caro, que pode deixar um lado do cérebro dormindo enquanto o outro trabalha. Fazem meses que não tenho uma boa noite de sono.

          - O que achou de nossas instalações?

          - Sabes que não vou fazer uma avaliação formal, pois não teria aonde arquivá-la. Para o mundo lá fora vocês não existem. Mas estou deslumbrado com o trabalho que vocês têm feito aqui Viatilis. Creio que vamos garantir a sobrevivência dos últimos cinco mundos por mais alguns séculos.

          - Na realidade eu calculei isso, e não tenho boas notícias.

          - Explique-se, Viatilis.

      - Graças aos novos psíquicos, Sinuhe, tenho condições hoje de manter estrita vigilâncias sobre as forças da GOE e verificar sua evolução. Comparando com tudo que estamos construindo aqui e projetando o embate de nossas forças, posso afirmar que mais um mundo irá cair em 50 anos. A Resistência Orgânica vai deixar de existir em dois séculos.

          - Você tem certeza, Viatilis?

        - Tenho. Eles estão à beira de mais um salto tecnológico que vai nos superar. Quando o próximo mundo cair, os demais o seguirão rapidamente.

          - Eu te conheço de longa data, meu caro. Se você não estivesse vislumbrando uma solução, me deixaria ir cego ao encontro do destino.

          - Você tem razão, mas para isso eu preciso de um favor seu. Fique aqui e me ajude a desenvolver uma teoria e depois colocá-la em prática.

          - Eu bem que gostaria. Tenho saudades do tempo que lidava apenas com ciência, mas não posso me aposentar, Viatilis. Está já é a minha sexta vida como comandante e estrategista da resistência. Ninguém mais qualificado do que eu surgiu até agora. Minha intuição desenvolvida e aprimorada por vocês, psíquicos, é única em análise de cenários de guerra.

          - Mas essa mesma intuição também é única na descoberta e analise de novas tecnologias. Tenho certeza de que se você analisasse o que a GOE está tentando criar poderia nos dar uma chance de defesa. Com sua ajuda estas instalações gerariam mais saltos tecnológicos.

          - Eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, Viatilis.

          - Neste ponto eu discordo de você. Da mesma forma que ninguém lá fora tem conhecimento da existência de Aldhafera, apenas eu e meus irmãos psíquicos sabemos o que se passa lá fora. Deixe-me reconstituí-lo uma segunda vez, Sinuhe, e você poderá estar aqui e na frente de batalha ao mesmo tempo, sem que ninguém saiba.

          - Você sabe que isso é proibido. Ninguém sabe o que aconteceria com uma alma se existirem dois corpos idênticos ao mesmo tempo.

          - Então. Ninguém sabia porque ninguém o tinha feito ainda. Isso é um tabu e não um fato científico.

          - Sabia...no passado...você o fez, Viatilis?

          - Não estaria propondo isso a você sem saber que estaria arriscando a existência de sua alma. Sim, fizemos. Quando um corpo é duplicado, a alma do original divide-se em duas, da mesma forma que um ser unicelular se reproduz. Não resulta em duas metades, e sim em duas almas completas e idênticas. Ambos os indivíduos passam uns dias sentindo uma certa “fraqueza”, mas depois tudo volta ao normal.

          - Confesso que me deixou assustado, Viatilis. Achava que iria dormir aqui hoje, mas pelo jeito terei muito o que pensar até amanhã cedo. Te darei uma resposta pela manhã, após efetuar a minha adoração à Nob.

          Sinuhe demorou, mas acabou dormindo. O relógio o acordou escrevendo em vermelho no teto do quarto – Nobadorar, 16 de Treddoze de 1963D’GOE. Ele fez sua adoração à Nob, tomou seu café da manhã e deu seu aval aos planos de Viatilis. Após ser transportado a bordo do Cheleb, um segundo Sinuhe foi criado dentro de Aldhafera. Ele sentiu em que momento isso foi feito, pois uma certa sensação de fraqueza o invadiu, conforme foi relato por Viatilis. O Marechal partiu sem olhar para traz. No dia seguinte, foi ao campo de batalha normalmente e nunca mais pisou no estaleiro de Aldhafera.

Agora ele se sentia mais forte do que nunca. Seu segundo eu não existia mais, e ele recebeu de volta a metade de sua alma, que lhe trouxe algumas imagens. Lembranças de uma vida que ele não viveu. Planos e construção de uma nave em forma de botão de flor, que seria protegida e conduzida por poderosos seres psíquicos escondida dentro de uma rajada de quasar, levando em seus imensos bancos de dados as informações necessárias para reviver as populações de cinco mundos em outra galáxia.

- Foi essa a resposta que encontramos juntos, Viatilis? Uma fuga.

Sinuhe ficou triste. Como militar, preferia uma vitória a uma fuga.


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