Lembranças Do Que Vivi e Do Que Não Vivi
A porta da cabine fechou automaticamente atrás de Sinuhe.
Ele sabia exatamente o que acabara de lhe acontecer. Seu duplo, criado há 40
anos, deixou de existir em Nobiloria e a metade de sua alma retornara. Sentou-se
no divã e pôs-se a lembrar de sua conversa com Viatilis, Conversa que o levara
a quebrar um tabu de seu povo.
“Não
se deve reconstituir um mesmo ser duas vezes ao mesmo tempo.”
Viatilis era o mais velho dos golfinhos psíquicos a serviço
da resistência. Um ser poderoso que sozinho mantinha em segurança um dos
principais estaleiros espaciais da Resistência Orgânica. Sob a força mental de
Viatilis era como se o Estaleiro Aldhafera jamais tivesse sido construído. Toda
pessoa que deixava o local, esquecia-se dele automaticamente. Nada em Nobiloria
era capaz de detectá-lo. Sequer os governos da resistência tinham registros de
sua construção. Tudo fora “deletado” por Viatilis. O único que sabia da
existência do estaleiro era o Marechal Sinuhe, apenas porque Viatilis assim o
permitia. Aldhafera era o responsável pelas inovações da resistência em
tecnologia de guerra. Dali saiam os mais variados protótipos de armas e naves.
Em seus bancos de dados estavam as memórias e corpos dos maiores cientistas de
Nobiloria. Ali nasciam as últimas gerações de poderosos seres psíquicos,
humanóides ou não.
Era o dia 15 de Treddoze de 1963D’GOE, um Noborar. A
batalha da semana terminara no dia Utiltres, dando mais tempo ao Marechal para
revisar a frota. Estando todas as naves em ordem para a semana seguinte, ele
resolveu fazer uma inspeção surpresa em Aldhafera, em pleno dia de oração a
Deusa Nob. Não sabia dizer quantas pessoas ainda guardavam os santos dias do
final de semana, já que eram os únicos em que as forças de GOE não batalhavam.
Era o tempo que os orgânicos tinham para se reorganizarem.
Sinuhe saiu da Nave Capitânia Menkalinan sozinho, pilotando
Cheleb, o pequeno cruzador particular do Marechal. Um motor armado até os dentes
que já o retirara de sérias enrascadas. Ele já havia sobrevivido à destruição
de duas naves capitânias e no futuro também veria o fim de Menkalinan.
Antes de traçar uma rota, chamou Viatilis mentalmente. A
resposta foi rápida. Aldhafera estava orbitando o Quasar de Nobiloria. Uma
viagem de duas horas em dobra 8. Quando Cheleb voltou ao espaço normal em torno
do quasar, uma projeção mental de Viatilis se fez presente na ponte de comando.
- Quanto tempo Sinuhe? Que bons ventos o trazem, meu amigo,
ao esquecido Aldhafera?
- Eu jamais esqueço dele e muito menos de você, caro amigo.
Estou com tempo e resolvi fazer-te uma visita. Quero relembrar bons momentos e
ver quais novidades vocês estão produzindo.
- Então, por favor, Senhor Marechal, desligue seus motores.
Vou teleportar você e Cheleb ao estaleiro. Não vou ariscar uma detecção abrindo
um hangar. GOE tem ouvidos e olhos demais esparramados por aqui. Tudo o que
eles viram foi uma rocha saindo da dobra espacial.
- Ok, Senhor Comandante Viatilis. Precauções nunca são
demais.
Sinuhe desligou os motores. Quando voltou a si estava de pé
na sala do apartamento reservado ao Marechal da frota em Aldhafera. Uma
projeção mental de Viatilis estava ao seu lado.
- Seja bem-vindo Marechal. Espero que a decoração esteja ao
seu gosto e que estas paredes lhe proporcionem um pouco de repouso. Vai passar
esta noite conosco, não?
- Não tinha essa intenção, mas sempre me esqueço do quanto
este apartamento é convidativo. Posso deixar para partir amanhã cedo.
- Ótimo. Quero lhe mostrar alguns projetos. Inclusive todos
os detalhes de Miaplacidus, sua futura capitânia.
-Uma nova capitânia?
Mas Menkalinan ainda está em ótimo estado e as forças de GOE ainda não
conseguiram superá-la.
- Realmente ela está durando mais que as suas
predecessoras. Mas eu não sei o que seria melhor. Se isso está ocorrendo porque
o Marechal está mais cuidadoso ou se é porque o inimigo está mais relaxado.
- Não vou discutir de quem são os méritos pela longa vida
de Menkalinan.
Ambos riram e continuaram falando de amenidades. Depois de
um delicioso café da manhã, Sinuhe visitou diversas instalações de Aldhafera,
viu as projeções em 3D de novos armamentos e da futura Miaplacidus e por fim a
maternidade dos psíquicos. Almoçou com alguns dos cientistas e discursou aos
militares residentes. Dispensou o jantar, tomando apenas um copo de suco de
maracujá. A única espécie sobrevivente do planeta natal da GOE.
De volta ao apartamento, livrou-se da farda, tomou um banho
e vestiu o confortável pijama de seda que estava sobre a cama a sua espera.
Sentou na poltrona defronte a cama onde fez suas orações diárias para Nob,
unindo as pontas dos dedos das mãos e encostando os dedões no queixo e os
indicadores na testa. Ao terminar chamou mentalmente por Viatilis, que se fez
presente.
- Já está pronto para dormir, meu amigo? Ainda é cedo.
- Infelizmente não sou como você, meu caro, que pode deixar
um lado do cérebro dormindo enquanto o outro trabalha. Fazem meses que não
tenho uma boa noite de sono.
- O que achou de nossas instalações?
- Sabes que não vou fazer uma avaliação formal, pois não
teria aonde arquivá-la. Para o mundo lá fora vocês não existem. Mas estou
deslumbrado com o trabalho que vocês têm feito aqui Viatilis. Creio que vamos
garantir a sobrevivência dos últimos cinco mundos por mais alguns séculos.
- Na realidade eu calculei isso, e não tenho boas notícias.
- Explique-se, Viatilis.
- Graças aos novos psíquicos, Sinuhe, tenho condições hoje
de manter estrita vigilâncias sobre as forças da GOE e verificar sua evolução.
Comparando com tudo que estamos construindo aqui e projetando o embate de
nossas forças, posso afirmar que mais um mundo irá cair em 50 anos. A
Resistência Orgânica vai deixar de existir em dois séculos.
- Você tem certeza, Viatilis?
- Tenho. Eles estão à beira de mais um salto tecnológico
que vai nos superar. Quando o próximo mundo cair, os demais o seguirão
rapidamente.
- Eu te conheço de longa data, meu caro. Se você não
estivesse vislumbrando uma solução, me deixaria ir cego ao encontro do destino.
- Você tem razão, mas para isso eu preciso de um favor seu.
Fique aqui e me ajude a desenvolver uma teoria e depois colocá-la em prática.
- Eu bem que gostaria. Tenho saudades do tempo que lidava
apenas com ciência, mas não posso me aposentar, Viatilis. Está já é a minha
sexta vida como comandante e estrategista da resistência. Ninguém mais
qualificado do que eu surgiu até agora. Minha intuição desenvolvida e
aprimorada por vocês, psíquicos, é única em análise de cenários de guerra.
- Mas essa mesma intuição também é única na descoberta e
analise de novas tecnologias. Tenho certeza de que se você analisasse o que a
GOE está tentando criar poderia nos dar uma chance de defesa. Com sua ajuda
estas instalações gerariam mais saltos tecnológicos.
- Eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo,
Viatilis.
- Neste ponto eu discordo de você. Da mesma forma que
ninguém lá fora tem conhecimento da existência de Aldhafera, apenas eu e meus
irmãos psíquicos sabemos o que se passa lá fora. Deixe-me reconstituí-lo uma
segunda vez, Sinuhe, e você poderá estar aqui e na frente de batalha ao mesmo
tempo, sem que ninguém saiba.
- Você sabe que isso é proibido. Ninguém sabe o que
aconteceria com uma alma se existirem dois corpos idênticos ao mesmo tempo.
- Então. Ninguém sabia porque ninguém o tinha feito ainda.
Isso é um tabu e não um fato científico.
- Sabia...no passado...você o fez, Viatilis?
- Não estaria propondo isso a você sem saber que estaria
arriscando a existência de sua alma. Sim, fizemos. Quando um corpo é duplicado,
a alma do original divide-se em duas, da mesma forma que um ser unicelular se
reproduz. Não resulta em duas metades, e sim em duas almas completas e
idênticas. Ambos os indivíduos passam uns dias sentindo uma certa “fraqueza”,
mas depois tudo volta ao normal.
- Confesso que me deixou assustado, Viatilis. Achava que
iria dormir aqui hoje, mas pelo jeito terei muito o que pensar até amanhã cedo.
Te darei uma resposta pela manhã, após efetuar a minha adoração à Nob.
Sinuhe demorou, mas acabou dormindo. O relógio o acordou
escrevendo em vermelho no teto do quarto – Nobadorar, 16 de Treddoze de
1963D’GOE. Ele fez sua adoração à Nob, tomou seu café da manhã e deu seu aval
aos planos de Viatilis. Após ser transportado a bordo do Cheleb, um segundo
Sinuhe foi criado dentro de Aldhafera. Ele sentiu em que momento isso foi
feito, pois uma certa sensação de fraqueza o invadiu, conforme foi relato por
Viatilis. O Marechal partiu sem olhar para traz. No dia seguinte, foi ao campo
de batalha normalmente e nunca mais pisou no estaleiro de Aldhafera.
Agora
ele se sentia mais forte do que nunca. Seu segundo eu não existia mais, e ele
recebeu de volta a metade de sua alma, que lhe trouxe algumas imagens.
Lembranças de uma vida que ele não viveu. Planos e construção de uma nave em
forma de botão de flor, que seria protegida e conduzida por poderosos seres psíquicos
escondida dentro de uma rajada de quasar, levando em seus imensos bancos de
dados as informações necessárias para reviver as populações de cinco mundos em
outra galáxia.
-
Foi essa a resposta que encontramos juntos, Viatilis? Uma fuga.
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