domingo, 19 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança - Parte IV

A Partida


          Mersonii observou atentamente a desmaterialização do duplo de Sinuhe. Sentia num canto de sua mente, que se considerava um assassino. Foi o próprio Sinuhe quem quis finalizar aquela vida duplicada – um suicídio assistido, disse Viatilis. Mas não era assim que se sentia. Dera cabo daquela vida, apesar dos milhares de bits que foram para o banco de dados. Mas não tinha como pensar nisso agora. Esperança tinha que partir. Faltavam menos de sessenta minutos para o disparo do quasar. Desmanchou sua projeção mental e mergulhou toda a sua atenção na sala virtual de comando que o coletivo de sua equipe de pilotos psíquica criava, dando suas primeiras ordens:

          - Steno, nossa situação?

          - Como previsto, Capitão, a poeira de nanomáquinas da GOE retirou-se da rota da rajada do quasar. Temos caminho livre para navegar em sub-luz sem sermos detectados até a borda da galáxia.

          - Stenella?

          - Escudos ao máximo, Senhor.

          - Visidii?

          - Rota traçada de acordo com as informações do Tático, Capitão.

          - Plumbea?

          - Caminho livre, Capitão. Nenhuma atividade GOE nas proximidades. A nave inimiga mais próxima está a quatro meses luz de distância, seguindo em direção oposta.

          - Hectori?

          - Toda comunicação GOE na área sob vigilância, Senhor. Nenhum bit a nosso respeito.

          - Tempo, Trópia?

          - Quarenta minutos para o disparo. Devemos partir agora, Capitão.

          - Teuszii?

          - Motores de impulso prontos no aguardo, Capitão.

          - Acionar, Teuszii. Começando com meia-luz, acelerando até atingir noventa e sete por cento no momento do impacto da rajada.

          - Sim, Capitão.

          - Mantenha a rota, Visiddi, os demais fiquem atentos.

          Esperança acionou seus poderosos motores psiônicos. A velocidade meia-luz foi atingida em dez minutos.

          Enquanto esperavam pelo impacto da rajada do quasar, Mersonii voltou a pensar em Sinuhe. As divergências entre o duplo do Marechal e Viatilis chegaram a um ponto sem volta. Como militar, Sinuhe jamais concordara com essa fuga. Deveriam lutar até o fim e aceitar a derrota, se assim o fosse. Mas Viatilis insistiu nessa jornada e Sinuhe optou por não fazê-la, transformando-se em dados. Mas o que Sinuhe talvez não soubesse, eram os motivos de Viatilis para criar esse plano de fuga. Para destruir GOE, Viatilis estava disposto a destruir também quase toda a Galáxia Anã de Nobiloria. E Mersonii com seus companheiros iriam ser os executores desta ação. Ele já se sentia culpado por matar um homem, mas num futuro breve todos eles iriam executar até mesmo a Mãe de Todas as Estrelas, a deusa Nob. O estresse gerado para esconder essa informação de Sinuhe fora terrível. Apesar de humano, Sinuhe tinha uma mente poderosa, e esses anos de convívio com diversos psíquicos a capacitaram ainda mais. Mersonii não tinha condições de determinar se Sinuhe havia descoberto algo ou não. Talvez, o que levara Sinuhe ao suicídio fora o fato de acreditar que o seu eu original receberia todas as informações de sua alma. A voz de Trópia tirou Mersonii de seus pensamentos.

          - Sete segundos para disparo do quasar, cinco, quatro, três, dois, um, Plumbia?

          - Disparo confirmado e na rota prevista. Vai nos atingir em 5 minutos, Vice-Capitã.

          - Informe, Visiddi.

          - Estamos na rota e velocidade corretas, Capitão.

          - Steno, e os nanos?

          - Caminho livre, Capitão. Eles estão mantendo posição apenas na borda da galáxia. Temos que estar mergulhados na rajada antes de atingi-los, ou seremos detectados. Temos dez minutos para essa manobra após o impacto.

          - Stenella, acionar rotação dos escudos. Preparar para impacto.

          - Escudos em rotação com aletas abertas, Senhor.

          - Nensis, situação.

          - Todos estamos perfeitamente bem, Capitão. Sistemas de suporte de vida em pleno funcionamento.

          - Trópia?

          - Um minuto para a rajada e contando.

          Sob a contagem da Vice-capitã, a rajada atingiu Esperança. Sua imersão no interior do feixe abriu um buraco na extremidade. A potência dos motores foi sendo reduzida até atingir um ponto de equilíbrio. Os escudos em rotação sugavam massas de energia da traseira da nave, lançando-as a frente e selando a extremidade do feixe. Esperança viajava agora tranqüilamente dentro da rajada do quasar, totalmente oculta, quase à velocidade da luz. Ela passou pelas nanomáquinas na borda de Nobiloria sem ser detectada.

          Plumbia projetou sua consciência fora da nave, observando toda a manobra. Ela não detectou a menor divergência entre a rajada em que eles mergulharam, das demais observadas anteriormente. Hectori também não encontrou nada nas comunicações da GOE que denunciasse a presença de Esperança. Plumbia podia agora observar todo o esplendor do gigantesco disco da Via Láctea e compartilhou essa imagem com os demais. Estavam a caminho de um novo lar.


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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança – Parte III

Lembranças Do Que Vivi e Do Que Não Vivi

          A porta da cabine fechou automaticamente atrás de Sinuhe. Ele sabia exatamente o que acabara de lhe acontecer. Seu duplo, criado há 40 anos, deixou de existir em Nobiloria e a metade de sua alma retornara. Sentou-se no divã e pôs-se a lembrar de sua conversa com Viatilis, Conversa que o levara a quebrar um tabu de seu povo.

“Não se deve reconstituir um mesmo ser duas vezes ao mesmo tempo.”

       Viatilis era o mais velho dos golfinhos psíquicos a serviço da resistência. Um ser poderoso que sozinho mantinha em segurança um dos principais estaleiros espaciais da Resistência Orgânica. Sob a força mental de Viatilis era como se o Estaleiro Aldhafera jamais tivesse sido construído. Toda pessoa que deixava o local, esquecia-se dele automaticamente. Nada em Nobiloria era capaz de detectá-lo. Sequer os governos da resistência tinham registros de sua construção. Tudo fora “deletado” por Viatilis. O único que sabia da existência do estaleiro era o Marechal Sinuhe, apenas porque Viatilis assim o permitia. Aldhafera era o responsável pelas inovações da resistência em tecnologia de guerra. Dali saiam os mais variados protótipos de armas e naves. Em seus bancos de dados estavam as memórias e corpos dos maiores cientistas de Nobiloria. Ali nasciam as últimas gerações de poderosos seres psíquicos, humanóides ou não.

       Era o dia 15 de Treddoze de 1963D’GOE, um Noborar. A batalha da semana terminara no dia Utiltres, dando mais tempo ao Marechal para revisar a frota. Estando todas as naves em ordem para a semana seguinte, ele resolveu fazer uma inspeção surpresa em Aldhafera, em pleno dia de oração a Deusa Nob. Não sabia dizer quantas pessoas ainda guardavam os santos dias do final de semana, já que eram os únicos em que as forças de GOE não batalhavam. Era o tempo que os orgânicos tinham para se reorganizarem.

          Sinuhe saiu da Nave Capitânia Menkalinan sozinho, pilotando Cheleb, o pequeno cruzador particular do Marechal. Um motor armado até os dentes que já o retirara de sérias enrascadas. Ele já havia sobrevivido à destruição de duas naves capitânias e no futuro também veria o fim de Menkalinan.

          Antes de traçar uma rota, chamou Viatilis mentalmente. A resposta foi rápida. Aldhafera estava orbitando o Quasar de Nobiloria. Uma viagem de duas horas em dobra 8. Quando Cheleb voltou ao espaço normal em torno do quasar, uma projeção mental de Viatilis se fez presente na ponte de comando.

          - Quanto tempo Sinuhe? Que bons ventos o trazem, meu amigo, ao esquecido Aldhafera?

          - Eu jamais esqueço dele e muito menos de você, caro amigo. Estou com tempo e resolvi fazer-te uma visita. Quero relembrar bons momentos e ver quais novidades vocês estão produzindo.

          - Então, por favor, Senhor Marechal, desligue seus motores. Vou teleportar você e Cheleb ao estaleiro. Não vou ariscar uma detecção abrindo um hangar. GOE tem ouvidos e olhos demais esparramados por aqui. Tudo o que eles viram foi uma rocha saindo da dobra espacial.

          - Ok, Senhor Comandante Viatilis. Precauções nunca são demais.

          Sinuhe desligou os motores. Quando voltou a si estava de pé na sala do apartamento reservado ao Marechal da frota em Aldhafera. Uma projeção mental de Viatilis estava ao seu lado.

          - Seja bem-vindo Marechal. Espero que a decoração esteja ao seu gosto e que estas paredes lhe proporcionem um pouco de repouso. Vai passar esta noite conosco, não?

          - Não tinha essa intenção, mas sempre me esqueço do quanto este apartamento é convidativo. Posso deixar para partir amanhã cedo.

          - Ótimo. Quero lhe mostrar alguns projetos. Inclusive todos os detalhes de Miaplacidus, sua futura capitânia.

          -Uma nova capitânia?  Mas Menkalinan ainda está em ótimo estado e as forças de GOE ainda não conseguiram superá-la.

          - Realmente ela está durando mais que as suas predecessoras. Mas eu não sei o que seria melhor. Se isso está ocorrendo porque o Marechal está mais cuidadoso ou se é porque o inimigo está mais relaxado.

          - Não vou discutir de quem são os méritos pela longa vida de Menkalinan.

          Ambos riram e continuaram falando de amenidades. Depois de um delicioso café da manhã, Sinuhe visitou diversas instalações de Aldhafera, viu as projeções em 3D de novos armamentos e da futura Miaplacidus e por fim a maternidade dos psíquicos. Almoçou com alguns dos cientistas e discursou aos militares residentes. Dispensou o jantar, tomando apenas um copo de suco de maracujá. A única espécie sobrevivente do planeta natal da GOE.

          De volta ao apartamento, livrou-se da farda, tomou um banho e vestiu o confortável pijama de seda que estava sobre a cama a sua espera. Sentou na poltrona defronte a cama onde fez suas orações diárias para Nob, unindo as pontas dos dedos das mãos e encostando os dedões no queixo e os indicadores na testa. Ao terminar chamou mentalmente por Viatilis, que se fez presente.

          - Já está pronto para dormir, meu amigo? Ainda é cedo.

          - Infelizmente não sou como você, meu caro, que pode deixar um lado do cérebro dormindo enquanto o outro trabalha. Fazem meses que não tenho uma boa noite de sono.

          - O que achou de nossas instalações?

          - Sabes que não vou fazer uma avaliação formal, pois não teria aonde arquivá-la. Para o mundo lá fora vocês não existem. Mas estou deslumbrado com o trabalho que vocês têm feito aqui Viatilis. Creio que vamos garantir a sobrevivência dos últimos cinco mundos por mais alguns séculos.

          - Na realidade eu calculei isso, e não tenho boas notícias.

          - Explique-se, Viatilis.

      - Graças aos novos psíquicos, Sinuhe, tenho condições hoje de manter estrita vigilâncias sobre as forças da GOE e verificar sua evolução. Comparando com tudo que estamos construindo aqui e projetando o embate de nossas forças, posso afirmar que mais um mundo irá cair em 50 anos. A Resistência Orgânica vai deixar de existir em dois séculos.

          - Você tem certeza, Viatilis?

        - Tenho. Eles estão à beira de mais um salto tecnológico que vai nos superar. Quando o próximo mundo cair, os demais o seguirão rapidamente.

          - Eu te conheço de longa data, meu caro. Se você não estivesse vislumbrando uma solução, me deixaria ir cego ao encontro do destino.

          - Você tem razão, mas para isso eu preciso de um favor seu. Fique aqui e me ajude a desenvolver uma teoria e depois colocá-la em prática.

          - Eu bem que gostaria. Tenho saudades do tempo que lidava apenas com ciência, mas não posso me aposentar, Viatilis. Está já é a minha sexta vida como comandante e estrategista da resistência. Ninguém mais qualificado do que eu surgiu até agora. Minha intuição desenvolvida e aprimorada por vocês, psíquicos, é única em análise de cenários de guerra.

          - Mas essa mesma intuição também é única na descoberta e analise de novas tecnologias. Tenho certeza de que se você analisasse o que a GOE está tentando criar poderia nos dar uma chance de defesa. Com sua ajuda estas instalações gerariam mais saltos tecnológicos.

          - Eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, Viatilis.

          - Neste ponto eu discordo de você. Da mesma forma que ninguém lá fora tem conhecimento da existência de Aldhafera, apenas eu e meus irmãos psíquicos sabemos o que se passa lá fora. Deixe-me reconstituí-lo uma segunda vez, Sinuhe, e você poderá estar aqui e na frente de batalha ao mesmo tempo, sem que ninguém saiba.

          - Você sabe que isso é proibido. Ninguém sabe o que aconteceria com uma alma se existirem dois corpos idênticos ao mesmo tempo.

          - Então. Ninguém sabia porque ninguém o tinha feito ainda. Isso é um tabu e não um fato científico.

          - Sabia...no passado...você o fez, Viatilis?

          - Não estaria propondo isso a você sem saber que estaria arriscando a existência de sua alma. Sim, fizemos. Quando um corpo é duplicado, a alma do original divide-se em duas, da mesma forma que um ser unicelular se reproduz. Não resulta em duas metades, e sim em duas almas completas e idênticas. Ambos os indivíduos passam uns dias sentindo uma certa “fraqueza”, mas depois tudo volta ao normal.

          - Confesso que me deixou assustado, Viatilis. Achava que iria dormir aqui hoje, mas pelo jeito terei muito o que pensar até amanhã cedo. Te darei uma resposta pela manhã, após efetuar a minha adoração à Nob.

          Sinuhe demorou, mas acabou dormindo. O relógio o acordou escrevendo em vermelho no teto do quarto – Nobadorar, 16 de Treddoze de 1963D’GOE. Ele fez sua adoração à Nob, tomou seu café da manhã e deu seu aval aos planos de Viatilis. Após ser transportado a bordo do Cheleb, um segundo Sinuhe foi criado dentro de Aldhafera. Ele sentiu em que momento isso foi feito, pois uma certa sensação de fraqueza o invadiu, conforme foi relato por Viatilis. O Marechal partiu sem olhar para traz. No dia seguinte, foi ao campo de batalha normalmente e nunca mais pisou no estaleiro de Aldhafera.

Agora ele se sentia mais forte do que nunca. Seu segundo eu não existia mais, e ele recebeu de volta a metade de sua alma, que lhe trouxe algumas imagens. Lembranças de uma vida que ele não viveu. Planos e construção de uma nave em forma de botão de flor, que seria protegida e conduzida por poderosos seres psíquicos escondida dentro de uma rajada de quasar, levando em seus imensos bancos de dados as informações necessárias para reviver as populações de cinco mundos em outra galáxia.

- Foi essa a resposta que encontramos juntos, Viatilis? Uma fuga.

Sinuhe ficou triste. Como militar, preferia uma vitória a uma fuga.


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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A Jornada de Esperança – Parte I

A Cópia do Marechal

Sinuhe olhava atentamente para seu console. Ali brilham os números que demonstram quantas vidas inteligentes estão salvas no banco de dados de Esperança – A última nave criada pelos seres nativos da galáxia anã de Nobiloria. Ela nada mais é que um gigantesco computador com capacidade de viajar no espaço. Um meio de fuga de um inimigo implacável que dominou todos os sistemas da galáxia.

Quase não existe mais formas de vida orgânicas entre aquelas estrelas. Tudo foi destruído e remodelado pela GOE - Grande Ordem Eletromecânica. Uma forma de vida artificial que exterminou seus criadores e se espalhou por aquele pequeno aglomerado de estrelas feito um câncer durante 20 séculos.

Sinuhe fora o capitão da nave até este momento. Agora deveria se juntar aos seus seis milhões de irmãos transformados em bits. A dez séculos atrás, seu povo descobriu que ao reconstruir o corpo de um ser consciente falecido, armazenado no banco de dados de um tele transporte, a alma original era atraída para ele, ressuscitando por completo aquele ser. Desde então milhares de pessoas, de diferentes raças, foram salvas da extinção imposta pela GOE. Mas a guerra jamais virou a favor dos orgânicos. É impossível vencer aquela inteligência artificial alto-replicante.

Já os ecossistemas dos mundos de Nobiloria foram totalmente perdidos. Animais e plantas replicados pelos sistemas de tele transporte não recuperam suas almas. Tudo o que Esperança tinha eram sementes e embriões congelados dos últimos cinco mundos da Resistência Orgânica. Amostras para terraformar novos mundos na grande espiral galáctica em torno da qual Nobiloria orbita. A Via Láctea.

A grande fuga não seria executada por Sinuhe. Para controlar a nave durante a viagem até a Via Láctea foram criadas cinco equipes de pilotos, cada uma com dez indivíduos. Quatro delas estão armazenadas nos bancos de dados. O tempo estimado de vida de cada equipe era de 150 anos. Considerando que a vigem deverá durar 416 anos, Esperança tinha uma equipe reserva. Todas elas são compostas de cetáceos alterados geneticamente. 

A Resistência Orgânica fora incapaz de criar mecanismos imunes a interferência e controle da GOE. A única força capaz de se opor à inteligência artificial foi o pensamento orgânico. Num dos planetas sobreviventes foi descoberta uma raça de golfinhos com capacidades tele cinéticas e telepáticas latentes. Quinze gerações depois, os cientistas obtiveram por meio de seleção genética, mentes capazes de criar campos de forças, mover naves e esconder a presença de cidades inteiras. Seres inteligentes que se voluntariaram para salvar vidas e civilizações, mas que surgiram muito tarde no cenário da guerra.

Esperança está totalmente camuflada dentro do campo psíquico de seus pilotos, protegida dos avançados meios de detecção de artefatos tecnológicos que a GOE espalhou por toda Nobiloria. Entretanto, as distorções provocadas por um objeto em dobra espacial não podem ser camuflados por campos psiônicos. Seus motores de dobra espacial só poderão ser ligados quando ela estiver a mais de 100 anos luz de distância da galáxia anã, para não correr o risco de ser detectada. A jornada de Esperança terá que começar com um meio de propulsão alternativo e natural.

Um brilho surgiu na ponte de comando humanóide de Esperança chamando a atenção de Sinuhe. Era a projeção mental de Mersonii, o capitão da equipe de golfinhos.
Além do Capitão Mersonii, a equipe de pilotos psíquica era composta por: Trópia, a vice capitã; Visidii, o navegador; Hectori, oficial de comunicações; os gêmeos Steno e Stenella, oficiais de tático e defesa; Teuszii, o engenheiro; Plumbea, oficial de astrometria e Nensis, médica e psicóloga da nave. Mas todos eles tinham uma função em comum. Eram a fonte de energia do poderoso campo de força e dos propulsores psiônicos da nave. Seus corpos estavam presos em animação suspensa dentro de cápsulas inundadas com nutrientes. Mas suas mentes eram livres para manifestarem-se em qualquer ponto de Nobiloria. Dentre eles, Plumbea era a mais capaz neste quesito. Ela podia até vasculhar a Via Láctea a 160 mil anos luz de distância.       

 A voz de Mersonii soou mansamente dentro da mente de Sinuhe:

- Chegou a hora, Marechal Sinuhe. Dentro de 156 minutos o quasar de Nobiloria irá disparar um feixe de energia em direção à Via Láctea. Se perdemos esse só teremos outro daqui há 30 meses.

- Não podemos perder essa “onda”, meu amigo. Sinuhe respondeu em voz alta. Não se acostumara ainda aos diálogos silenciosos com os golfinhos - Surfar na ponta do feixe de um quasar a 97,7% da velocidade da luz. Minha mente não acredita que o campo mental que vocês criam é capaz de suportar tal força, protegendo e guiando esta nave, apesar de todos os cálculos e simulações que eu mesmo fiz e vi.

- A nave tem apenas um décimo do diâmetro do feixe. Suportaremos muito estresse no começo, mas uma vez imersos na ponta, aceleraremos os propulsores psiônicos que nos manterão a uma distância segura da massa mais crítica de energia quântica o que também estabilizara a nave. Mantendo essa velocidade por 103 anos, chegaremos a 100 anos luz de distância de Nobiloria. Neste ponto ligaremos os motores de dobra espacial e saltaremos com segurança para a Via Láctea.

- Um salto de 313 anos em dobra 9. Neste ponto Mersonii, os mundos da resistência já terão caído. Só espero que sem opositores em Nobiloria, os olhos gananciosos da GOE não se voltem para a Via Láctea.

- O objetivo dela é a nossa extinção. Se não souberem que estamos lá, não irão nos perturbar.

- Tomara que você esteja certo Mersonii. Que Nob, a mãe de todas as estrelas, nos proteja nessa viagem.

- Ela olha por todos nós, Marechal.

- Vocês tem notícias da frente de batalha?

- Sim, Plumbea mantém discreta vigilância e compartilha tudo conosco. Seu original evitou a queda de Altalun por mais uma semana.

- Por mais uma semana. Um planeta por vez, uma tentativa por semana. Estamos a vinte séculos vivendo essa rotina de batalhas sistemáticas. Perdi a conta de quantas comandei e só Nob sabe quantas mais meu eu original terá que comandar até que o último mundo caia. Quando eu for reconstituído na Via Láctea, será que minhas almas se unificarão e me darão essas lembranças?

- Eu espero que não, Marechal. Creio que seriam lembranças pesadas demais. Os últimos dias dos orgânicos em Nobiloria não serão agradáveis.

- Sou o único humanóide que foi reconstituído estando ainda vivo. Minha alma partiu-se em duas por si só, para habitar esse segundo corpo e, aparentemente, sem danos ao original. Agora que vocês vão me “armazenar”, minha alma voltará ao verdadeiro Sinuhe? Levará o que vivi até ele?

- Não tenho essas respostas, meu amigo. Você está pronto?

- Sim. Adeus, Mersonii.

- Adeus, Sinuhe.

Com a força de sua mente, Mersonii acionou os controles do tele transporte. Sinuhe ficou imóvel e desapareceu lentamente o ar. Seu corpo virou mais alguns milhões de bits nos bancos de dados de Esperança enquanto que sua alma voltou ao Sinuhe original.

CONTINUAÇÃO


     

A Jornada de Esperança – Parte II

             O Marechal Original

          Dia Utilcinco da segunda semana do mês de Treddoze do ano de 2003D’GOE. Mais uma vitória para a Resistência Orgânica. Desde que psíquicos de algumas raças não humanóides se uniram às forças da resistência, as vitórias se tornaram mais constantes, mas não mais fáceis.

A equipe de comando da nave capitânia Miaplacidus olhava atentamente para seu comandante à espera de ordens, mas o Marechal Sinuhe tinha a mente perdida em pensamentos e aparentava cansaço. Ele olhava atentamente para o grande telão da ponte que mostrava as forças de GOE em retirada.

Sinuhe estava realmente exausto. Perdera a conta de quantas destas batalhas semanais travara. Ele foi promovido a Marechal das forças da resistência no dia Vinte de Cinddoze de 1028D’GOE. Morrera em batalha e fora reconstituído cinco vezes desde então. A maior parte de suas lembranças advinha dos seus diários particulares e militares, pois muito pouco era recuperado no processo de reconstituição pelo tele transporte. Ele sabia que seus subordinados aguardavam ordens, mas esperava que o piloto tomasse a iniciativa de voltar para casa. Teriam um final de semana tranqüilo pela frente e, no máximo no Utildois seguinte, as forças de GOE estariam de volta para mais uma batalha. Todo militar sabia disso, então não precisavam de ordens para seguir uma rotina de vinte séculos. Disciplina e hierarquia eram suas desculpas.

- Dois mil anos em batalhas e ainda não descobrimos porque essas máquinas malditas paralisam a guerra aos Noborars e Nobadorars. Até parece que são tementes à Mãe de Todas as Estrelas para guardarem seus dias san...

Sinuhe não terminou a frase. Sentiu de repente como se algo estranho adentrasse sua carne e abraçou-se a si mesmo para espantar um frio repentino. Então uma onda de calor e energia espalhou-se por seu corpo e uma imagem veio até sua mente. Uma nave cilíndrica semelhante ao botão de uma flor ou uma ponta de lança.

- Astrometria. Rápido. Focalize e coloque na tela principal o Quasar de Nobiloria.

- Sim Senhor.

Djau, o oficial de astrometria, obedeceu prontamente a ordem do Marechal enquanto que a metade da equipe quase caía das cadeiras de susto. Todos olhavam para Sinuhe, que agora parecia mais jovem, transbordando de energia. A imagem do quasar apareceu na tela e foi sendo ampliada lentamente. Assim que ela se estabilizou, um grande jato de energia escapou do astro em direção às fronteiras de Nobiloria. Sinuhe olhou atentamente o fenômeno e não viu nada de anormal. Aquela cena era conhecida a séculos por todos os estudantes e estudiosos. Djau, agindo dentro de sua costumeira eficiência, gravou o fenômeno e pediu uma análise ao computador da nave.

- Não sei o que o senhor procurava, Marechal, mas segundo nossos sensores o disparo do quasar está dentro dos parâmetros normais que temos no banco de dados. Esse disparo foi em direção a Via Láctea. Segundo os registros, as rajadas nessa direção ocorrem a cada 30 meses.

- Obrigado, Djau. Koroma, trace curso para a sede da frota.

- Sim, Senhor.

- Tjety, abra um canal para todas as naves.

 - Sim, Senhor. Cinco, dez, vinte, cinqüenta, noventa, cem por cento da frota na escuta Marechal.

- Senhores, mais uma semana ganha pelos orgânicos. Pela graça de Nob, manteremos essa rotina. Temos menos de três dias para nos recompor até a próxima batalha e reconstituir os que pereceram hoje. Levantem os danos e programem os reparos. Quero todos nos estaleiros antes que este Utilcinco acabe. Vamos para casa. Nos reencontraremos no Utilum que vem. Miaplacitus desliga. Tático, resumo da batalha.

- Quatro naves e dezoito caças destruídos Marechal, três naves precisaram de reboque por raio trator. Tivemos 47 sinais de cápsulas de fuga, todas resgatadas. Noventa e sete nomes foram para a lista de reconstituição. Sessenta por cento da frota inimiga destruída. Noventa e três horas de batalha, Senhor.

- Obrigado, Nebetya. Djau, faça uma busca padrão com sensores físicos e psiônicos. Não quero deixar ninguém para traz. Nem vivo, nem morto. Quanto tempo?

- Já estava em andamento, Marechal. Mais dez minutos.

- Koroma, leve-nos para casa assim que Djau terminar. Osorkon, a ponte é sua. Estarei em minha cabine caso tenha alguma novidade.

- Sim, Senhor. Bom descanso, Marechal.

O Capitão Osorkon esperou Sinuhe entrar em sua cabine para depois sentar na cadeira do capitão. O silêncio foi ficando pesado até ser quebrado pela oficial tática Nebetya.

- Acho que pela primeira vez vou usar essa pergunta de forma totalmente apropriada. O que foi que baixou no Marechal? Tenho quase nenhuma PES, mas senti que algo invadiu a ponte.

- A minha PES é mais forte. Informou a piloto Koroma. – Realmente algo entrou aqui. Pude sentir. O que tem a dizer os seus sensores Djau?

- Primeiro as obrigações. Capitão, encontrei mais quatro sobreviventes entre alguns destroços. Já foram resgatados pelo tele transporte. A lista de reconstituição ganhou mais três nomes. Podemos partir, Senhor.

- Koroma, acionar. Vamos para casa.

Capitão Osorkon pensou que o assunto estaria encerrado, mas o oficial de comunicações Tjety engrossou as fileiras dos curiosos.

- E quanto à pergunta dela Djau? Tem algo entre seus bits?

- Nos sensores nada, mas um de nossos cetáceos, a Clymene, responsável pelos escudos nesta setor da nave, informou uma projeção humanóide na ponte e que ela pertencia ao Marechal. Só que Clymene não viu o Marechal lançar a projeção. Viu apenas seu retorno.

- Nosso Marechal não é um psíquico superdesenvolvido para efetuar uma projeção antes da batalha e mantê-la até após seu término. Com certeza Clymene estava muito ocupada defendendo nosso casco quando o Marechal a criou. Chega deste assunto, senhores. Nosso dia-a-dia já é estranho o suficiente. Olho na rota Koroma. Djau e Nebetya, vigiem nossa retaguarda. Tjety, mantenha os ouvidos atentos.

E assim Osorkon encerrou de vez o assunto. Uniu as pontas dos dedos das mão encostando os polegares no queixo e os indicadores na testa. Fechou os olhos e orou agradecendo a Nob pela vitória da semana.  


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